Por Fábio Vale / Repórter do Jornal de Fato
Para muitos, um veículo automotor é considerado uma arma sobre rodas, seja ela duas, em caso de motocicleta, ou quatro em se tratando de carros comuns. Tal perspectiva é reforçada pelas milhares de mortes resultantes de acidentes de trânsito. O óbito de um motociclista atingido por um carro nesta semana na segunda maior cidade do Rio Grande do Norte reacendeu no contexto local o debate sobre a legislação que trata de crimes relacionados a acidentes de trânsito.
Para aprofundar essa discussão, a reportagem do Jornal DE FATO consultou um advogado sobre a atual legislação que trata do tema; e conversou com uma psicóloga sobre os aspectos envolvendo o sentimento de perda de um familiar ou amigo por acidente de trânsito; e também com um pai que perdeu um filho de apenas seis anos de idade, ao ter o carro atingido por outro veículo. Acerca da legislação vigente que versa sobre crimes relacionados a acidentes de trânsito, a reportagem manteve contato, por meio de aplicativo de mensagens, com o promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) em Mossoró, Romero Marinho.
Ele, que também é professor da Universidade do Estado (UERN), das disciplinas de Teoria Geral do Direito Penal e Prática Processual Penal, informou inicialmente que a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, é a atual legislação que trata de crimes de trânsito no geral. Romero Marinho explicou que no caso de acidentes de trânsito que resultem em vítimas feridas, existem pelo menos três esferas de responsabilização. “A responsabilização cível, que é por danos à questão pecuniária, dinheiro. Depois, nós temos a responsabilização administrativa. No meio desse dano, pode ter havido alguma infração de trânsito, aí é passado uma multa. E nós temos a responsabilização criminal, que é feito nas esferas dos instrumentos de persecução penal, que seria delegacia, Ministério Público e Poder Judiciário”.
Já em se tratando de situações com acidentes de trânsito que resultem em vítima morta, o promotor e professor, que também é Mestre em Ciências Sociais e especialista em Direito Processual penal e Investigação Criminal, esclareceu que o direito penal distingue as mortes, “embora o resultado naturalístico, quer dizer o que a gente encontra ali no mundo do fenômeno ele é o mesmo ‘morte’, mas ele pode ser distinto, porque ele pode ser um crime doloso ou culposo”.
1.042 acidentes
Um recente levantamento divulgado pela Secretaria de Segurança, Defesa Civil, Mobilidade Urbana e Trânsito (Sesdem) de Mossoró deu conta de 1.042 acidentes de trânsito, sendo 948 com vítimas e 94 sem vítimas, registrados já neste ano na cidade, o que representa uma média de, aproximadamente, 11 acidentes por dia. A Sesedm aponta o excesso de velocidade, o desrespeito à sinalização e a imprudência como as principais causas. Diante desse cenário, a secretaria inicia, a partir da próxima terça-feira (1º), a operação de novos radares, redutores de velocidade e equipamentos de videomonitoramento em pontos estratégicos do município.
Promotor e professor explicam diferença na tipificação de crime doloso e culposo no trânsito
O promotor de Justiça e professor universitário, Romero Marinho, seguiu pontuando que doloso é quando a pessoa tem intenção verdadeiramente do resultado do crime, que seria o homicídio. “Então, eu bati para matar. E culposo, seria um descuido. Você por algum motivo não tomou o cuidado devido, agiu com imprudência, negligência ou imperícia e causou a morte de uma pessoa”, detalhou.
Ele chama a atenção para o fato de que no doloso, a pessoa vai para o tribunal do júri; e que no culposo, vai responder pelo artigo 302 da lei do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que estabelece as penalidades para quem praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor; o que inclui pena de detenção, de dois a quatro anos, - podendo ser aumentada por determinados fatores como embriaguez - e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
O promotor e professor explica também que a legislação permite que um condutor envolvido em um acidente com vítima fatal pague fiança e seja liberado. “A regra no processo penal brasileiro é a pessoa responder ao processo livre. Ele tem que preencher alguns requisitos para que seja decretada a prisão antes. Não como antecipação de pena, mas como cautelaridade. Quer dizer, caso eu deixo a pessoa solta vai causar algum tipo de prejuízo não só no processo como na aplicação da lei penal. Então, solta, essa pessoa pode ameaçar testemunha, juiz, promotor, pode continuar cometendo crimes”, destacou.
“No caso do crime de trânsito, se a gente considerar que seja um crime culposo, que é o que a legislação de trânsito trata, nós vamos ter uma impossibilidade de decretação de prisão porque a lei brasileira não permite prisão preventiva em caso de crime culposo de qualquer natureza, mesmo que o resultado seja morte. Então, para se decretar prisão preventiva no Brasil, entre outros requisitos, precisa ser crime doloso com pena superior a quatro anos. Se for abaixo de quatro anos ou culposo, não pode decretar prisão preventiva da pessoa que cometeu qualquer tipo de crime culposo. Quer dizer, não tem intenção de matar uma pessoa”, reforçou ele.
Jurista considera legislação 'muito branda'
Acerca de diferença legal entre matar uma pessoa com arma de fogo, arma branca ou com as próprias mãos, e conduzir um veículo e atingir alguém, tendo como resultado a morte, o promotor de Justiça e professor Romero Marinho disse que “nesse caso há uma diferença de elemento subjetivo, quer dizer a vontade, o ‘animus’ que a pessoa foi conduzida”.
Ele explica que no caso da matar com arma de fogo, arma branca ou próprias mãos, tem-se claramente um elemento doloso. “Quer dizer, a pessoa quis cometer. Conduzir veículo e atingir alguém tendo resultado morte, se for culposo é completamente diferente. Que a pessoa não quis o resultado, mas ela não teve o zelo, o cuidado de perceber as regras de trânsito e infringiu. E acabou chegando a um resultado morte”, observa.
“Pode acontecer da pessoa pegar o carro, ver um desafeto e querer matá-lo com o carro. Aí seria doloso igual às outras. Então, o carro aí foi uma arma. Então, a gente tem que divisar bem claramente a diferença entre crime doloso, que é aquele que tem vontade de matar, e o culposo, quando você tem um deszelo, quando você descuida, um dever de vigilância que todos temos que ter na sociedade”, complementa ele.
Questionado sobre o que precisa ser feito para que a legislação de crimes relacionados ao trânsito possa ser alterada, o promotor de Justiça e professor Romero Marinho disse incialmente que há uma grande ilusão colocando a responsabilidade para o direito penal resolver as demandas da sociedade. Ele afirmou que a atual legislação sobre o assunto é muito branda, como toda a legislação brasileira. “Nós temos um bem muito caro para se tutelar, que é a vida. E eu entendo, que embora o resultado seja morte, mas, a conduta seja culposa, a pessoa não teve uma intenção”.
O jurista frisa que nessa seara tem vários aspectos que precisam ser considerados, por exemplo, a pessoa agir sob a influência de bebida alcoólica. “Devia ser muito mais majorado a pena nesse caso. Então, eu acho que poderíamos deixar alguns setores para a questão administrativa, simplesmente multa, mas poderíamos fomentar o aumento da reprimida relativamente àquelas pessoas que causam as mortes mesmo que culposamente na direção de veículo automotor”.
Perito criminal que perdeu filho em acidente defende leis mais rígidas para homicídio em direção veicular
O perito criminal Clélio Diogo Soares, atualmente com 39 anos de idade, conta que já perdeu um familiar vítima de acidente de trânsito. Ele fala da perda do filho dele, Gabriel Victor, de seis anos de idade. Clélio Diogo lembra que o fato trágico aconteceu no dia 15 de maio de 2020, quando retornavam para Mossoró de uma viagem a Natal, onde a sogra dele tinha iniciado um tratamento de câncer.
“No retorno dessa viagem estava bastante chuvoso e chegando ali um pouco depois da cidade de Angicos, um motorista iniciou uma ultrapassagem proibida e colidiu de frente com o carro em que eu vinha com a minha família”, relata Clélio, pontuando que o filho dele teve várias lesões internas e que até ficou desmaiado no banco de trás do carro. “Então, logo após a colisão, eu o peguei e levei pra o hospital de Angicos com a ajuda de uns populares e lá ele ainda ficou vivo em torno de uma hora, mas não resistiu aos ferimentos internos e à hemorragia por conta do impacto da batida que foi muito forte”.
Clélio detalha que a criança vinha na cadeira com o cinto de segurança e que além da morte do filho, o acidente resultou em costelas dele fraturadas, que deixou a esposa também com algumas lesões internas e pé fraturado; e que resultou ainda na sogra com traumatismo craniano, precisando ficar hospitalizada por pelo menos uns dois meses depois do ocorrido. O motorista do outro carro e uma passageira também morreram, sobrevivendo apenas uma criança de 11 anos de idade. “Então foi um acidente de altas proporções e de muita gravidade”, frisou Clélio, pontuando que a responsabilidade do acidente, demonstrada em laudos periciais de órgãos responsáveis, foi do motorista que faleceu que teria feito uma ultrapassagem indevida em uma subida e em alta velocidade com pista molhada.
“Então há essa combinação de fatores: alta velocidade em uma ultrapassagem proibida. Isso tudo fez com que ele perdesse o controle do carro dele e viesse colidir com o meu de frente. Então a responsabilidade pelo ocorrido foi por conta dele mesmo”, explicou Clélio, mencionando que se esse motorista tivesse sobrevivido provavelmente ele estaria respondendo por homicídio culposo e por lesão corporal. Clélio chama atenção para a necessidade de leis mais rígidas para homicídio em direção veicular.
Pai avalia que atual legislação reforça impunidade
“Eu acredito que hoje a pena aplicada para homicídio culposo, ela deixa a pessoa impune”, avalia ele, citando que o máximo de pena que a pessoa vai pegar é quatro anos e que, dificilmente, com réu primário, fica preso. “A legislação precisa ser mudada, precisa elevar essa pena do homicídio culposo, para as mortes causadas no trânsito”, defende o perito criminal Clélio Diogo Soares, observando que o que está em vigor ainda é uma pena que não inibe o comportamento delituoso.
“Não faz a pessoa repensar duas vezes quando vai pegar a direção do veículo automotor, e beber e andar em alta velocidade, e fazer racha, e outras manobras indevidas, como o ‘grau’”, enfatizou ele, citando a morte de uma criança de cinco anos em Mossoró em 2023, atingida por um motociclista que teria empinado o veículo. “Hoje, nosso modelo penal faz com que a pessoa saia praticamente impune depois de tirar a vida de outra pessoa. Então, acaba que não desincentiva porque não é uma punição efetiva. Eu defendo que precisa ser feito um ajuste na legislação, uma alteração na penalidade”, reafirmou Clélio.
Para ele, fatores como embriaguez e excesso de velocidade deveriam ser elementos suficientes para caracterizar uma pena mais rígida. “Eu acredito que qualquer coisa que você faça na direção que aumenta o risco de você matar uma outra pessoa é um assumir de risco. Eu entendo que a legislação é branda nesse sentido, principalmente, com relação a álcool e velocidade, porque precisa está muito bem provado por várias outras circunstâncias”, ressaltou, dizendo que a população precisa mobilizar os legisladores para uma mudança na gravidade da pena.
'É uma perda irreparável, não natural', conta pai que perdeu filho em acidente
Clélio ainda contou como tem sido lidar com a perda do filho. “Lidar com a perda, no nosso caso que é a perda de um filho, é algo praticamente impossível sem ter ajuda de profissionais, sem ter fé em Deus, sem ter uma espiritualidade pra acreditar. Porque é uma perda irreparável, é uma perda não natural. Então, tanto eu quanto a minha esposa e minha família, a gente precisou realmente toda ajuda possível de amigos, de terapeutas, da nossa igreja. É um processo que todo dia a gente vive e carrega essa dor como se fosse ontem”.
“Então, com certeza para todos aqueles familiares que perdem um ente querido de forma trágica em acidente de trânsito, eles carregam essa dor para o resto da vida como se fosse ontem, que é o nosso caso. A gente aprende a lidar e andar com essa dor para poder continuar vivendo, mas muito da nossa vida pessoal é perdida o brilho por conta disso. Pela falta daquela pessoa, porque a gente vai ter que aprender a viver, a aceitar a perda pela irresponsabilidade alheia e tentar o máximo possível transformar essa dor em algo que seja positivo para a sociedade e para as pessoas que estão ao redor”.
“Eu encontrei no ativismo pela redução de acidente de trânsito, principalmente no ativismo pela duplicação da BR-304, uma forma de extravasar essa dor, essa frustração, essa perda. A gente canalizou esse esforço e essa dor no esforço para que a BR-304 seja duplicada. No fim de 2020 para 2021, a gente iniciou um trabalho muito forte nas redes sociais com a política do estado, com a política federal, e hoje quase cinco anos depois, a gente está vendo o fruto desse trabalho acontecendo, que é o projeto da BR-304 sendo licitado a obra de execução pra começar aí em meados de setembro, outubro desse ano. Então isso tudo é fruto de muita cobrança e muita briga e da transformação desse luto em luta”, finalizou ele.
Psicóloga fala de aspectos relacionados ao luto de perder alguém em acidente
A psicóloga clínica Lígia Cristina Azevedo Sousa falou com a reportagem sobre aspectos relacionados ao luto de perder alguém em acidente de trânsito. Ela disse que ao longo da sua trajetória profissional já lidou com casos em que foram deflagrados processos identificados como “lutos complicados”.
Integrante do Núcleo de Desenvolvimento Humano e social da Prefeitura de Mossoró, Lígia Sousa explicou que os efeitos, relacionados ao processo de perda de um ente querido vítima de acidente de trânsito, dependem do perfil e das vulnerabilidades do indivíduo. “Devido ao caráter repentino, é comum experimentar negação ao receber uma notícia trágica de tamanho impacto”, pontuou.
“Autopunição também pode estar presente quando se experimenta culpa ou a sensação de que poderia ter evitado. A depender da exposição, avaliamos a possibilidade do Transtorno de Estresse Pós-traumático, raiva ou revolta excessiva quando envolve a irresponsabilidade de outrem ou até mesmo algum tipo de Transtorno Depressivo quando ampliamos a duração, o grau e a intensidade da tristeza, a qual obviamente faz parte do processo”, acrescentou ela que também é Mestra em Psicologia.
“É importante sentir sem julgamentos, expressar e acolher todos os sentimentos, apoiando-se em pessoas amadas que partilham o contexto de dor. É legítimo saber que está fazendo efetivamente todo o possível para honrar com justiça a fatalidade ocorrida. No mais, também se experimenta impotência diante do caráter irreversível da perda, prevenindo comportamentos impulsivos que só trariam mais sofrimentos. A saúde espiritual muitas vezes é o alicerce para o fortalecimento e o amparo emocional no processo de aceitação, o qual cada pessoa possui seu tempo de elaboração”, asseverou.
Tags: