Jornal de Fato
Quatro décadas separam o Brasil do dia em que Tancredo Neves e José Sarney foram escolhidos para assumir a Presidência da República por meio de uma eleição indireta. Era 15 de janeiro de 1985. Dois meses depois, em 15 de março, 40 anos completados hoje, José Sarney, vice-presidente eleito, assumia interinamente o cargo de presidente do país em razão dos problemas de saúde de Tancredo, que provocou a sua morte em 1º de abril.
Embora a nação ainda tivesse um longo caminho para consolidar as liberdades e os direitos conquistados, aquele momento se tornou um símbolo de esperança e renovação política. Foi um passo crucial no processo de transição do regime militar para a democracia.
A caminhada rumo à redemocratização envolveu diversas forças políticas, sociais e culturais. A ditadura instaurada em 1964 se estendeu por 21 anos, período marcado por repressão, censura e ausência de eleições diretas para a Presidência. Na virada dos anos 1980, grupos de oposição se fortaleceram, uniram-se em frentes amplas e encontraram em Tancredo Neves um articulador hábil para conduzir a transição.
O Colégio Eleitoral foi a solução possível na época, assegurando que parlamentares de diversos partidos, inclusive parte da base governista, pudessem se alinhar à candidatura civil, na figura de Tancredo. Embora ainda distante do ideal das eleições diretas, o resultado no Colégio Eleitoral simbolizou a derrocada do poder irrestrito dos generais.
O 15 de janeiro de 1985 foi um marcado porque essa consolidou o anseio de boa parte da sociedade brasileira por um regime mais aberto e democrático. Mesmo tendo nascido de um acordo político que manteve certos resquícios do autoritarismo, a vitória de Tancredo Neves representou a entrada em uma nova era.
As forças políticas que lutaram contra a ditadura — estudantes, sindicatos do ABC, imprensa alternativa, movimentos pela anistia ampla e partidários de campanhas como as Diretas Já — finalmente vislumbraram a possibilidade de participação efetiva nos rumos do país.
A partir daquele momento histórico, iniciou-se uma fase de transformações institucionais, que culminaria na elaboração da Constituição de 1988. O texto constitucional veio para garantir direitos civis, políticos e sociais, ampliando a noção de cidadania e elevando a barra das demandas populares.
A importância na construção da democracia
A redemocratização não foi instantânea. O período pós-ditadura revelou a dificuldade de consolidar o Estado de Direito, especialmente diante das tensões entre grupos conservadores e a pressão pela ampliação de direitos civis.
Apesar disso, a eleição de Tancredo Neves impulsionou mudanças fundamentais:
- Reestruturação partidária: surgiram novas legendas e houve a reconstrução da antiga oposição, agora livre para concorrer ao poder;
- Fortalecimento dos movimentos sociais: as reivindicações por direitos humanos básicos, como moradia digna, saneamento e saúde universal, ganharam mais força política;
- Reforma institucional: a Constituição de 1988 ampliou liberdades e garantias individuais, estabelecendo pilares para a democracia, como o voto direto para presidente;
- Valorização da participação popular: a luta por eleições diretas e a intensa mobilização social formaram novas lideranças políticas e despertaram o engajamento popular.
As conquistas de 1985 permanecem como alicerce
Completadas quatro décadas desse capítulo fundamental, reverencia-se não apenas a vitória simbólica de um político mineiro, mas a luta de toda uma sociedade que, após anos de repressão, encontrou fôlego para dizer que o poder de decidir os rumos da nação deve estar nas mãos do povo.
O aprendizado que se extrai desse processo é simples e, ao mesmo tempo, profundo: a democracia brasileira nasceu de muitos sacrifícios e deve ser cultivada todos os dias.
As conquistas de 1985 permanecem como alicerce e nos lembram que o diálogo, a busca por consenso e a participação popular têm o poder de reverter cenários autoritários. A proteção das liberdades civis e políticas, somada à inclusão social, é o caminho para a construção de um país mais justo e plural.
Enquanto houver o compromisso de tornar o país mais livre, igualitário e solidário, a eleição de Tancredo Neves continuará sendo lembrada como o dia em que a nação começou a retomar as rédeas de seu próprio destino.
Risco de novo golpe ameaçou posse de Sarney e volta da democracia
Por Ricardo Westin – Agência Senado
Numa análise mais apressada da redemocratização, pode-se imaginar que, em 15 de março de 1985, os generais não tiveram alternativa a não ser devolver o governo do país aos civis, após 21 anos de ditadura militar. Não foi bem assim.
Nesse dia, o presidente eleito, Tancredo Neves, deveria ter recebido a faixa presidencial do general João Baptista Figueiredo, naquele que prometia ser um dos marcos da redemocratização. Tancredo, como se sabe, não assumiu o poder, mas a democracia, sim, voltou.
A redemocratização se tornou realidade porque o vice-presidente eleito, José Sarney, tomou posse no lugar de Tancredo e ocupou interinamente a Presidência da República, à espera da recuperação do titular. O Brasil comemora agora o 40º aniversário desse episódio.
Aquele 15 de março, no entanto, poderia ter tido outro desfecho. Diante das surpreendentes notícias de última hora a respeito da saúde de Tancredo, que foi operado de emergência e não poderia ser empossado no dia marcado, houve militares que conspiraram e se movimentaram para impedir que Sarney assumisse o poder.
Se o golpe de Estado tivesse obtido êxito, esses militares teriam retardado a redemocratização e dado à ditadura uma sobrevida de não se sabe quanto tempo.
O historiador Antonio Barbosa, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e consultor legislativo aposentado do Senado, explica:
— Fazia algum tempo que Tancredo sabia que a sua saúde não ia bem, mas ele decidiu que só se trataria e seria operado depois da posse, quando a redemocratização já estivesse garantida. Tancredo tinha consciência de que golpistas nas Forças Armadas procuravam qualquer pretexto para não devolver o poder aos civis.
O problema é que a saúde de Tancredo não pôde esperar a posse. Na noite de 14 de março, sem forças para resistir às dores no intestino, ele foi levado para o Hospital de Base de Brasília, onde foi operado às pressas.
Os golpistas logo se agitaram. Duas razões principais moveram esse grupo. A primeira foi a ausência de uma lei que autorizasse o vice-presidente eleito a tomar posse sem o titular. Teoricamente, Sarney só poderia ocupar a Presidência da República de forma interina se Tancredo tivesse sido antes empossado.
Entre políticos do PMDB, houve inclusive quem defendesse que o empossado fosse o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, por se tratar do segundo nome na linha de sucessão presidencial.
Sarney se transformou em desafeto dos militares ao sair do PDS
A segunda razão que moveu os golpistas foi o próprio José Sarney, que se transformara num desafeto dos militares em 1984, quando mudou de lado, deixando o PDS (partido de sustentação da ditadura, sucessor da Arena) e se filiando ao PMDB (principal partido de oposição) com o objetivo de compor a chapa presidencial encabeçada por Tancredo. Sarney havia sido o primeiro presidente nacional do PDS.
No livro Tancredo Neves: a noite do destino (Editora Civilização Brasileira), o jornalista José Augusto Ribeiro, que foi assessor de imprensa da Tancredo na época do Colégio Eleitoral, conta que o presidente Figueiredo, ao saber da hospitalização do presidente eleito, pediu ao seu ministro do Exército, general Walter Pires, que impedisse a posse do vice.
O levante dos quartéis só não se consumou porque, àquela altura, Pires não tinha mais poder. A exoneração de todos os ministros do último governo da ditadura já estava publicada no Diário Oficial da União.
Ao mesmo tempo, o ministro do Exército escolhido por Tancredo, Leônidas Pires Gonçalves, garantiu que, diante de qualquer tentativa de golpe de Estado, agiria prontamente na repressão dos rebeldes e na garantia da redemocratização.
Um dos sinais mais claros de que Figueiredo não aceitava Sarney foi a bizarra reação do general no dia da posse. Ele simplesmente se recusou a transmitir o poder para o vice de Tancredo e abandonou o Palácio do Planalto pelos fundos antes da chegada do presidente interino.
Dos males, o menor: em vez de simplesmente recusar-se a transmitir o poder, Figueiredo apenas cometeu a descortesia de não entregar a faixa presidencial.
Quanto ao impasse legal, decorrente da falta de uma lei prevendo a posse isolada do vice-presidente eleito, recorreu-se a uma solução política. Numa reunião na madrugada do dia 15, o deputado Ulysses Guimarães redigiu com os demais líderes políticos do Congresso Nacional um documento estabelecendo que, para que a Mesa do Senado desse posse a Sarney, bastaria um laudo médico atestando que Tancredo não tinha condições físicas de estar no Parlamento naquele momento.
Vários historiadores entendem que, recusando-se a ser operado antes da posse, Tancredo fez um sacrifício pessoal e colocou a democracia e o Brasil acima de sua própria vida. Num editorial de primeira página publicado na época, o jornal Tribuna da Imprensa descreveu a atitude como “heroísmo cívico”.
Tancredo Neves morreu em 21 de abril de 1985
Transferido para São Paulo, onde foi novamente operado, Tancredo Neves morreria pouco tempo depois, no feriado de 21 de abril, devido à falência de múltiplos órgãos. Houve cortejos fúnebres em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João del Rei (MG), sua cidade natal, onde foi enterrado.
A posse de Sarney, em 1985, coroou o longo período de transição política, iniciado em 1974, quando o general Ernesto Geisel tomou posse e pôs em ação um plano de abertura “lenta, gradual e segura” — segura para os militares.
Como parte dessa abertura, foi aprovada em 1979 a Lei da Anistia, que garantiu que os agentes da repressão não seriam punidos por seus crimes, e foi rejeitada em 1984 a eleição direta para presidente da República, de modo que os militares pudessem ter controle sobre a eleição do primeiro presidente civil, escolhido de forma indireta pelo Colégio Eleitoral (que era composto por senadores, deputados federais e representantes das assembleias legislativas).
De acordo com o historiador Antonio Barbosa, Tancredo foi o candidato oposicionista consentido pelos militares em razão de seu temperamento político:
— Ele era um velho liberal e politicamente era ponderado. Nunca foi do confronto, embora fosse firme em suas ideias. Em vez construir muros, preferia construir pontes. Tancredo surgiu nos momentos finais da transição democrática como o candidato que conseguia representar o sentimento oposicionista e, ao mesmo tempo, ser aceito pelos militares.
Ele conclui:
— Sarney entrou para a história por ter cumprido o papel, originalmente pertencente a Tancredo, de garantir a passagem da ditadura para a democracia, sem rupturas, de forma pacífica, sem derramamento de sangue, por meio da negociação política. Sarney reforçou esse papel de fiador da democracia quando convocou os constituintes para elaborar a Constituição de 1988, a que redemocratizou o Brasil na letra da lei.
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